segunda-feira, 20 de junho de 2016

Eu ainda acredito em mim

O que sei ou acho que sei um pouco de mim, do que tenho dentro, do que tenho fora, do que me constitui no pensamento, no sentimento, na palavra, na sensação, na percepção, na intuição e tudo o que possa estar expresso nessa relação de mim comigo mesma e com o mundo que aí está a dar voltas parte da memória que me faz viva.
Sou o que acho que sou e o que descubro em um novo momento sendo ou deixando de ser, por meio desse canal invisível, mas, ao mesmo tempo, palpável, que é a memória. A memória tem esse duplo, não se vê e, no entanto, se vê toda.
A memória é minha identidade. Diz quem eu sou em relação a mim e ao outro. Ela estando em mim me sinto mais cômoda, mais calma desse medo de poder me perder de mim mesma. A memória quando bálsamo, me alegra toda, alarga meu sorriso. Quando punhal, me fere, me rasga, me chora, mas ainda assim me afaga por não me fazer me esquecer de mim. Se esquecer de si é terrível. Mas traz também sanidade.
Meu pai tem Alzheimer. Ele todos os dias se esquece de um bocadinho de cada coisa: o dia no calendário, a refeição, o lugar, o banho, os números, as horas. Ele todos os dias toma uma memória pela outra: o nome da esposa pelo nome da mãe, o que passou com o filho pelo o o que experienciou com a filha, a irmã que ainda vive pela irmã morta, o que viveu há anos atrás pelo o que acaba de viver. Ele todos os dias está no passado do presente. Ele todos os dias é o menino pobre que corria pela praia de Maceió, tomava banho de rio, e tinha como bichinhos de estimação a ovelha Maninha e a porquinha Lelo-Leco. Ele todos os dias inventa histórias que nunca existiram. Meu pai é um contador de histórias.
A memória que é minha no momento me dá informações que me permitem me remeter a mim mesma, me dar referências, me apontar direções, me projetar sonhos. Sei que nesse momento em que escrevo sou Fabiana e que tenho um mar de desejos a desbravar. Minha memória me permite guardá-la; isso é um presente generosíssimo que ela me oferece. Porque posso guardar memória me faço gente. E nesse caminho de ser gente, lembro, esqueço, vacilo, palpito, omito, minto, tomo emprestado, crio, costuro, refabulo, engulo, dou tchau. Minha memória me faz nascer, crescer, me reproduzir em muitas e morrer. Minha memória é minha ancestralidade, sou eu, o outro, e tudo o que está no intermédio e além.
A memória é um labirinto. Vai, segue, volta, perde, vira, olha, retorna, para, corre, gira, dança, senta, esquece, teme, treme, passeia, pergunta, cega, desiste, insiste, embaralha, lembra, conserta, dói, sufoca, cansa, inventa, escolhe, apaga, mente, trai, revela, emudece, seca.

sábado, 16 de janeiro de 2016

Ainda há quem queira

Naquele meu andar sonolento de uma manhã dentre outras manhãs, a rua passa. Passam árvores que mudam de cor, pessoas em suas rotinas desencontradas, carros a disputar a velocidade da pista. Eu passo nessa rua que passa. E como uma fricção na paisagem já conhecida, passa o carro que anuncia o que não serve mais: - Compro material que você não quer, grita o megafone. Este inusitado reverbera em mim. Compra-se o velho, o quebrado, o desusado, o que não tem mais jeito, o que não tem mais valor, aquilo que não é mais desejado, aquilo que está fora do tempo, o que está doente, o que é antigo, o rejeitado, o que não funciona, o que não pega no tranco, o que ninguém mais utiliza, o que é negado. Esse acontecimento nos segundos da  minha manhã me estremeceu toda. Quem dá a sentença do fim das coisas? Sim, há o fim das coisas. E também o quase fim, o entremeio, que é um fôlego antes do fim. E nesse antes do final das coisas há ainda o que se fazer. Há a vida que sopra ainda. O restinho de respiração que acena frágil e desejosa de vida. A vida mesma que insiste em estar sendo vida. A vida que, esperta, negocia. A vida que ainda quer jogar. A vida que quer ver um pouco mais do mundo. A vida que pede um tempo para a morte. E que bonito, não? Há quem queira saber daquilo que está no meio do caminho; há quem se dedique, por pura vontade, àquilo que já muito viveu e que ainda não quer descansar para sempre. Sorri para a possibilidade de uma segunda chance para as coisas. Sorri para Deus.

A água da noite

Estou a pensar que os dias têm passado velozmente, rasgando-me toda, tudo em mim. Despida me deixa, enlouquecida me deixa. Fico de toda assustada. Espantada mesmo. Meu coração desvairado fica a sambar por aí. Pra lá pra cá. Em compasso de rápido. O descompassado dos segundos. Fica faltando-lhe a pausa necessária pra se fazer a canção. A canção pro dia, pro horário do meio, e pro vir da noite. Fica tudo junto, como se não houvesse mais a hora inventada dos homens. E não há hora decidida pras coisas de lá de trás do ontem e pras que virão do dia que antecede o fim. O que há é esse íntimo de tempo de agora em que minha respiração se afunda. Aqui a existência se instala todinha, acolhida, e se deita de corpo espreguiçado. Aqui, meu agora é meu. Sinto-o dando-me fogo interno, percorrendo meus líquidos, inundando minhas carnes. Entendo da forma que me é possível. Nesse agora em que estou inteira, a noite se coloca grande, gorda, negra, molhada, voluptuosa, insaciável, inteira. Ela se põe a morder em amolecido deleite os que nela se abrigam. Se faz majestosa sobre todos os seres. Porque assim é sua natureza. Agora estou aqui pousada, como um passarinho prestes a soltar sua próxima nota de canto. Tenho a cabeça levemente voltada para cima, o corpo descansado e escuto os sons da noite que pinga forte e incansável. Vastidão. Assim estou, envolta em toda a grandeza que o instante me dá como presente de se fazer instante.



quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Um dia como qualquer outro

      Efigênia é uma mulher de, aproximadamente, 35 anos.
    Tem a pele morena, olhos castanhos escuros e cabelos pretos ondulados na altura do ombro.
      É magra e esguia, de estatura mediana.
    Efigênia é uma mulher silenciosa. Fala pouco e faz pouco barulho. Gosta de música clássica, tendo Chopin como seu compositor de predileção.
     Estudou datilografia e secretariado. Confecciona suas próprias roupas, aprendeu a costurar com sua mãe. Lê romances Sabrina, Júlia e Bianca.  Sonha um dia escrever seus próprios romances.
     É filha única de um casal de agricultores que vivem em uma pequena cidade ao sul do país.  Abandonou a casa dos pais aos trinta anos para procurar emprego em uma cidade maior onde pudesse trabalhar como datilógrafa ou secretária. Sonha em trabalhar em um escritório de advocacia.
    Mora há cinco anos em um pequeno apartamento de um quarto no centro de Feliz Espera. Não conseguiu o emprego que tanto desejava. No entanto, não reclama do trabalho que lhe dá o seu sustento. Há três anos é funcionária dos Correios, onde executa a função de separar as correspondências por endereços de destinatários. Trabalha cinco dias por semana, 40 horas semanais. Gosta de seu trabalho, realiza-o de forma competente.
   Uma vez por semana Efigênia canta no coral de Feliz Espera, há exatos dois anos, assiduamente. O grupo se reúne há quatro anos no salão paroquial da única igreja católica da cidade. O coro tem em seu repertório músicas sacras, especialmente, medievais.
   Efigênia conheceu Juliano num dos encontros do canto coral. Juliano freqüenta o grupo desde a sua fundação. Ele não canta, mas faz o acompanhamento das músicas ao teclado, juntamente com um violonista.  Juliano é soldado. Trabalha num posto do exército localizado na fronteira de Feliz Espera com Auriverde.  Juliano é dez anos mais jovem que Efigênia.
   Efigênia e Juliano são noivos há um ano. Pretendem se casar assim que Juliano retornar de uma missão pacificadora em um país vizinho. Os dois, quinzenalmente, se correspondem por cartas. Efigênia conta os dias para a volta de Juliano.

  
É quarta-feira. Efigênia realiza seu trabalho como de costume. Todos os dias correspondências para separar e empilhar. Semana sim, semana não, uma carta de Juliano. Ao final do expediente, Efigênia se despede de Marta, sua companheira de sessão e dos demais colegas de trabalho.
Sai da agência dos correios por volta das 17:30. Faz o seu caminho habitual de volta para casa. Caminha, como todos os dias, cerca de meia hora. Gosta de caminhar.
Chega ao seu apartamento aproximadamente às 18h, quando toca o sino da paróquia local.


domingo, 16 de outubro de 2011

Então é assim que se morre?

É cedo, o sol brilha.
Tudo poderia se dar como acontece nos dias comuns.
Abri os olhos. Acordei diferente. Eu ainda não tinha me percebido.
De repente, me fiz escuridão.
O tempo fechou, minha visão só pode ver o escuro do tempo.

(O que estou tentando fazer agora é um esforço de memória, é a tentativa de lembrar do que ainda resta ou do que invento como lembrança. Eu quero crer  que o que penso agora possa guardar o sentimento do instante em que a coisa se fez matéria)

A coisa me apareceu de súbito. Era uma desconhecida.
Ela surgiu negra como a noite e me engoliu com sua grande boca.
Meu gosto ficou amargo.
Eu me apaguei.

Antes do total desfalecimento ainda pude tocar minhas mãos frágeis nos objetos ao redor, que, por um breve momento, me ofereceram sustentação. Minhas pernas buscavam equilibrar-se, manter-se firmes. Exercício vão.  Meus pés derretiam e se misturavam à água que corria como um rio caudaloso.

Antes do total desfalecimento ainda pude me reconhecer. Pude me lembrar da bendita palavra dentre todas as que existem. E a palavra, tendo se feito gente, foi minha salvação.

Me apago. Me apago.
Um fiapo de luz entra em mim. Me acendo fracamente, para depois me apagar de novo.

Escuto meu nome, gritado desesperadamente. Os mesmos gritos desesperados me sacodem e me arrastam, na tentativa de que a vida não escape. O corpo falha e se perde no meio de si mesmo. O corpo falha mas ainda se ressurge a favor de si.
Um tapa no rosto choca meu cérebro e me conduz à pergunta mais profunda que minha cabeça já pode ter se feito: Então é assim que se morre?

Um prenúncio, um toque, um acontecimento, um registro, um estado, um sentimento.

Uma pergunta.

Um corpo que cala e fala.



domingo, 2 de outubro de 2011

Um nome

Eu tenho um nome que não me chama, nunca me chamou. Eu nunca me senti sendo chamada por esse nome, sendo identificada com ele, sendo ele, ele me sendo, ele reverberando em mim.
Tantas vezes eu me perguntei: Por quê?
O meu nome não se parece comigo, não me cola em mim, não me ressona. O meu nome não me nomeia.
Meu nome não é onde eu possa mergulhar.
É permitido que eu escolha um nome pra mim? É permitido que eu me dê um nome, um nome conforme eu me veja e reveja? Um nome que me faça, que me constitua, que me dê inteireza?
Há um nome identidade-de-mim, memória-de-mim, cópia-autenticada-de-mim, assinatura-de-mim?
(Fogos de artifício)
Esses fogos são uma ode ao nome que eu possa me sonhar, ao nome com o qual eu possa me batizar.
Um nome nomeia, portanto, diz o que a coisa é, o que significa e o que pode ser. Não é?
E o que pode ser?
Por que não bicho? Por que não árvore? Por que não pé? Gaiola? Chave? Livro? Nuvem? Janela? Peito? Labirinto? Água? Pedra? Brinquedo? Asa? Coisa? Silêncio? Por quê? Um nome serve pra quê?
Eu sempre estranho o nome com que me chamam. Às vezes eu faço com que a pessoa repita o meu nome duas, três vezes, para que eu realmente possa entender que ela se refere a mim, eu, com esse nome, com aquele nome.
O meu nome é meu?
Por que ter um nome?
Meu nome me diz a mim quem eu sou? Meu nome me percebe, me compreende, me localiza, me preenche, me expressa, me corporifica, me dá alma? Meu nome reconhece o meu passado e o meu eu que está sendo agora nesse instante que passa e que vai passando?
Pra que um nome? Por que um nome?
Em que nome eu estaria? Que nome eu seria?

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Agora. Memória.

Sobre mim, o Mundo.
o mundo 
que me dança, que me sangra, que me pinta, que me sonda, que me usa, que me afeta, que me dorme, que me vê, que me veste, que me ri, que me mente, que me pensa, que me morde, que me sua, que me surra, que me ouve, que me delira, que me lança, que me fala, que me esconde, que me mexe, que me pisa, que me treme, que me embala, que me mostra, que me laça, que me canta, que me pisca, que me sente, que me grita, que me compra, que me zomba, que me torce, que me inquieta, que me inala, que me corta, que me fica, que me chora, que me ruga, que me bebe, que me fura, que me maquia, que me corre, que me engole, que me cega, que me empurra, que me anda, que me cai, que me enfeia, que me lambe, que me enfraquece, que me sofre, que me puta, que me encarece, que me soa, que me pára, que me curte, que me assombra, que me vasculha, que me surda, que me desencanta, que me abraça, que me acorda, que me come, que me enerva, que me transporta, que me embrutece, que me mija, que me corrõe, que me descasca, que me chuva, que me penetra, que me lágrima, que me arrota, que me só, que me move, que me grita, que me deita, que me inutiliza, que me conforta, que me ressona, que me descabela, que me engana, que me brota, que me enraivece, que me cospe, que me puxa, que me nega, que me limita, que me anseia, que me cheira, que me gira, que me entrega, que me some, que me bate, que me enxerga, que me chupa, que me sopa, que me acalenta, que me sorri, que me esquece, que me lava, que me intui, que me perturba, que me vem, que me vai, que me desfalece, que me cuida, que me entra, que me chuta, que me chama, que me regurgita, que me transborda, que me alegra, que me perde, que me ganha, que me envelhece, que me arrasta, que me voa, que me pergunta, que me grava, que me prende, que me testa, que me bole, que me suja, que me honra, que me apazigua, que me introduz, que me descrê, que me comove, que me vigia, que me desfaz, que me disfarça, que me submete, que me começa, que me desembrulha, que me lembra, que me acaba, que me borra, que me amaldiçoa, que me leva, que me descarrega, que me fuma, que me aceita, que me planta, que me gargalha, que me estupra, que me aliena, que me assopra, que me enrijece, que me esbraveja, que me mama, que me pune, que me enfraquece, que me beija, que me disfarça, que me sussurra, que me amolece, que me encara, que me vende, que me irrita, que me foge, que me manda, que me escarra, que me quebra, que me curra, que me seduz, que me machuca, que me escolhe, que me leva, que me cansa, que me suga, que me ensina, que me acena, que me espelha, que me imagina, que me escreve, que me enaltece, que me dramatiza, que me mata, que me cresce, que me muda, que me cura, que me sonha, que me liberta, que me viva, que me viva, que me viva.